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Bom dia Vietnã, resenha


14/05/2009, 10h58m.


Não me parece que fazer filmes alienados e alienantes, que recortam e recontam a história filtrando-a com lentes cor-de-rosa e a distorcem para enaltecer o american way of life seja um hábito só da Touchstone, ou da Disney. Parece-me que é o modo de ser habitual da indústria cinematográfica norte-americana, que é, segundo um conhecido lugar-comum, uma fábrica de sonhos. O sonho mais fabricado e vendido ali é o próprio modo de ser americano, a própria imagem dos EUA.

2. O filme é irregular na mistura dos ingredientes da fórmula de produto para todos os gostos: o romance soa artificial e se perde no meio da confusão; o humor é irregular e repetitivo, e quase sempre de mau gosto; o drama, além de irritantemente maniqueísta, é superficial e previsível, com cada um dos estereótipos sendo apenas o estereótipo esperado; como filme-denúncia dos horrores da guerra, vai só até onde isso é útil para comover o espectador e manipulá-lo para receber a mensagem. No fim, quem queria graça não ri, quem queria romance se sente tapeado, quem esperava drama se frustra.

Pior de tudo é que está lá, no centro, ocupando a tela inteira e sobrando para fora dela, o horroroso Robin Willians, fazendo mais uma vez o único papel que sempre fez, o deRobin Willians.

3. O filme fala um pouco sobre a mídia rádio. E me fez lembrar que das grandes mídias de massa o rádio é aquele onde é mais fácil o comunicador criar para si um personagem grandioso. Na TV ou no cinema, por maior que seja a mágica, a pessoa está limitada pela sua aparência física: Bette Davis não podia ser Eve Harrington, assim como Anne Baxter não poderia ser Margo Channing.

No rádio, onde só a voz conta, é diferente. Conheci radialistas que brilhavam e encantavam fãs porque no rádio pareciam o que a voz parecia. Podiam ser fortes, majestosos, sedutores. A voz não denuncia que o falante é mirrado, calvo, magricela, amarelado, narigudo. Lembro especialmente de um, que pelo rádio parecia um gigante, vigoroso, bravo, espirituoso, e quando o conheci pessoalmente revelou-se apagado e insignificante.

4. É verdade que o filme manipula a história, e a recorta e reconta com uma finalidade ideológica. Isso nem é disfarçado. Mostra a feiúra da guerra, de relance, de passagem, quase como um detalhe fora de foco. A guerra, a bem dizer, é um figurante, aparece menos que os botões da camisa do Robin Willians. O grosso do tempo de filme é para mostrar como os americanos legais, representados pelo protagonista e seus amigos, com quem o espectador é constrangido a se identificar, são inocentes daquela barbárie, que é culpa dos mandantes, dos líderes malvados, arrogantes e desleais.

Em retórica esse método é chamado de dissociação. Se temos de defender um conceito impopular, o caminho é dividi-lo em dois aspectos, duas partes, dois componentes, para demonizar um deles e santificar o outro.

Ridicularizar Nixon, ademais, é um truque barato: escolher para Judas um ex-presidente impopular é como chutar cachorro morto, é buscar a simpatia do espectador (do espectador médio americano, se imagina) pelo caminho do óbvio.

É eloquente, acerca disso, o fato de que, salvo numa pequena parte da célebre cena em que se ouve Armstrong, os soldados americanos nunca aparecem fazendo a guerra. Aparecem às vezes marchando, se exercitando, viajando em caminhões, ouvindo rádio, ociosos. A guerra mesmo aparece ou trazida para a cena pelas mãos dos vietcongs, ou chegando pelo telex, vinda de Washington, ou no mapa atrás da mesa do sargento-major malvado.

5. No entanto a indústria cultural não está livre dos atos falhos, que acabam contrabandeando para dentro do produto, acidentalmente, o desvelamento da sua condição de mecanismo de propaganda.

Um primeiro ato falho: a cena em que os vietnamitas assistem a um filme americano é antológica, na sua modéstia. Não consegui escapar da sensação chocante de que todos nós, consumidores dos enlatados do norte, somos ridículos ao nos deleitarmos, como aqueles vietnamitas, com imagens que mostram pessoas, situações e realidades que não têm nenhum ponto de contato conosco e, pior, nos conduzem para um mundo de sonho que é o oposto da realidade que nos espera quando as luzes se acenderem.

6. Pena que eu não entenda do assunto, mas o filme, tão deficiente enquanto obra de arte, serviria mesmo de ótimo mote para estudo do que é humor, do que é que nos faz rir.

Há, de um lado, a grossa contradição que é realizar um filme com temática humorística num cenário de guerra. Parece que a idéia que o filme quer vender é a de que tudo tem um lado bom, e que mesmo na guerra pode-se achar graça, assim como os inimigos podem fazer uma pausa na matança para jogar baseball improvisado. Mas melhor examinando, a idéia que se acha ali é a de que o egoísmo humano consegue se adaptar e rir até da morte, desde que seja a dos outros.

Por fim, do que se ri, nesse filme? O americano ensina os vietnamitas a rirem de palavras chulas. Convida seus camaradas, pelo rádio, a rirem da guerra, de seus líderes, do papa, do homossexual. Mas os espectadores, pelo menos os que compareceram ao CinUEM hoje, riram mesmo foi do tenente que é autoritário, mas ninguém respeita. Riram especialmente quando ele tenta ser engraçado, e só consegue ser ridículo.

Vi aí outro ato falho. Esse tenente Hauk, interpretado por Bruno Kirby, é o personagem mais tocante do filme, o mais verdadeiro: é patético, é falho, é inepto, e não sabe, e não percebe, e se vê muito maior e melhor do que realmente é. Humano, em suma, demasiado humano, o único personagem de carne e osso num elenco de estereótipos rasos. Sua tentativa desastrada de fazer humor é um momento mágico do filme, aquele onde, provavelmente sem querer, as imagens dizem uma verdade: simplesmente não tem graça, a guerra não é engraçada, não é possível rir disso.

7. Um filme mais honesto sobre a guerra do Vietnã, Apocalypse Now, não se pejou de mostrar como na guerra todos se embrutecem, todos sujam as mãos, todos se desumanizam. O personagem de Martin Sheen, em sua trajetória iniciática guerra adentro, não descobre só a brutalidade de quem manda fazer a guerra, mas se embrutece ele próprio, como os demais à sua volta, os que não morreram. O capitão Willard termina aprendendo e ensinando que, na guerra, quem não vira predador vira presa.

Já o radialista Cronauer não tem a desculpa da inocência, já chega ao Vietnã sabendo que a guerra é feia e seus superiores cruéis. Sua rebeldia é pueril: se temos de chacinar, que o façamos ouvindo a música proibida. E persiste, até a última cena, crendo que os inimigos podem brincar juntos. Só que Cronauer vai embora, e quando a partida improvisada de baseball termina a guerra continua. Enfim, Cronauer não viu que a questão não se resume a que palavra se usa para dizer tomate.
ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
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